sábado, 4 de abril de 2009

“EU TENHO ORGULHO... DE SER AMAZONENSE”

De Adelson Santos (12/2008) *

O filósofo Platão classificava os artistas de dois modos: os apologistas, ou seja, aqueles que exaltavam as qualidades da república, e os “amolecedores dos costumes” que, ao contrário, denunciavam as mazelas da mesma república. Para os apologistas, Platão ofertava os lazeres do ócio republicano. Para os “amolecedores dos costumes”, ele mandou jogar fora da cidade, igual como fez Mao Tse Tung na sua deletéria revolução cultural para implementar o comunismo na china.
Está passando na televisão um vídeo onde alguns artistas famosos do reino da clorofila, aparentemente felizes, alegres e sorridentes, cantam a pleno pulmões: “eu tenho orgulho... de ser amazonense... eu tenho orgulho... de ser amazonense”. Que lindo. É difícil de ver e ouvir isso, ou seja, amazonense falando bem de Manaus ou do Amazonas. Na verdade, acho muito bonito cantar que a terra onde a gente nasceu é a melhor do mundo. É uma prova de afeto dos grandes. Mas pra que isso aconteça, ou seja, pra você propagar que ama a terra onde nasceu, é preciso que esta terra ofereça condições sociais, culturais e econômicas para que todos se sintam bem e felizes. Quando digo todos, estou me referindo ao sentido literal da palavra, ou seja, absolutamente todos, e não apenas para “os de cima” e mais uma dúzia de artistas apologistas cantando aparentemente felizes, alegres e sorridentes: “eu tenho orgulho... de ser amazonense”.
Acho que Manaus com todos os delírios de parecer que é uma cidade cosmopolita e civilizada, habitada por um povo cordial que trata bem os que chegam de fora, pra mim nada disso me incentiva nem a cantar, como fazem os artistas apologistas, e nem elogiar Manaus como uma cidade agradável para se viver. E além do mais, acho a propaganda feita pelos apologistas, enganosa e alienante, daquelas que tentam transformar uma mentira em uma grande verdade. E toda vez que toca a tal música na televisão com os artistas sorridentes, imitando aquele célebre jingle “We Are The World” (qualquer semelhança é mera coincidência, até mesmo porque “We Are...” foi feito para arrecadar fundos para a fome na África, e o “Eu Tenho Orgulho...” foi feito para fazer propaganda política), enfim, eu fico me perguntando se os artistas apologistas acreditam mesmo naquilo que estão cantando, ou se apenas estão representando e pondo suas vozes à serviço da propaganda enganosa, simplesmente para faturar o leite das crianças com a mixaria paga pelo Estado pelo trabalho de cantar no jingle.
Sinceramente, bem que gostaria de propagar da mesma forma o meu amor por Manaus e de ter orgulho por ser amazonense. Gostaria mesmo, de verdade. Entretanto quando vejo em propaganda de outdoors espalhados pela cidade que os tataranetos de Ajuricaba estão sendo iludidos “pelos de cima”, com as ilusórias e redundantes promessas de que estão construindo o futuro (é bom lembrar que esse negócio de construir o futuro é só pra enganar “os de baixo” porque pra eles, “os de cima”, estão todos é curtindo o presente da “dolce vita” clorofilada). Quando vejo os mestiços da aldeia recebendo educação de terceiro mundo, ou seja, a famosa educação dos excluídos, prontos para virar lixo humano na primeira curva do rio; morrendo pelos corredores dos hospitais por falta de leito e de médicos; apanhando sol e chuva em paradas de ônibus (isso quando tem ônibus); vivendo sobressaltados em tempo de chuva pelas enchentes dos igarapés que “os de cima” invadem as margens para construir suas casas em condomínios de luxo; saindo de casa cinco horas da manhã para trabalhar no distrito industrial e voltar sete horas da noite para depois ganhar um salário de fome no final do mês, sinceramente, tudo isso me deixa de língua travada para dizer que “eu tenho orgulho de ser amazonense”.
Quando entro numa de flanar pelas ruas de Manaus - na verdade esgotos a céu aberto - e vejo assaltantes perseguindo e roubando pessoas de bem em frente de casa em plena luz da manhã; filinhos de papai estacionando seus Hilux e Hiunday do ano em fila dupla impedindo o trânsito de fluir normalmente (cadê o DETRAN que só serve para incentivar a indústria de multas); flanelinhas com cara de fome pedindo pro “patrão” um troco pra comprar um prato de comida. Quando vejo na mídia os mesmos e antigos políticos medíocres enganando o povo com seus discursos teias, seduzindo com falsas promessas os pobres corações amantes do nosso Brasil, ofertando um quilo de feijão, uma receita médica ou uma bolsa família em troca de voto (isso pra não falar de outras canalhices e sujeiras mais abrangentes que as TVs escancaram nos noticiários todos os dias), sinceramente, se eu tivesse sido convidado para cantar: “eu tenho orgulho... de ser amazonense”, com certeza jamais entraria nessa presepada. Primeiro por ser uma propaganda enganosa feita para iludir e ludibriar os pobres corações amantes dessa coisa indefinida, enigmática e mal resolvida chamada Manaus. Segundo porque isso contraria minha consciência artística, nega minha integridade profissional, e perturba o pouco de lucidez que consegui preservar, com bastante esforço, junto com a minha dignidade de cidadão.





* Adelson Santo é professor de música na Universidade Federal do Amazonas
Tel: 32364960 // 99919237
Air Mail: santosadelson@hotmail.com