sábado, 25 de julho de 2009

DISCURSO DE POSSE
FEITO NO CAUA PELO NOVO DIRETOR
ADELSON SANTOS
Manaus, 6 de julho de 2009
Depois de 64 anos viajando pelas estradas da vida, no meio de tantos buracos e curvas ultrapassadas perigosamente, tantos caminhos e atalhos percorridos, tantas encruzilhadas perigosas, tantos sonhos desfeitos, tantas fronteiras alcançadas e limites superados, tenho a impressão que hoje posso me dar ao luxo de andar de costas para o futuro e olhar de frente para o passado.
E entre tantas coisas que vejo quando olho de frente para o passado, percebo que o CAUA (Centro de Artes da Universidade do Amazonas) já foi um dos maiores centros de atividades pedagógicas e produção artística, sem qualquer exagero, do Amazonas e do Norte do País. Aqui, em época de matrícula, havia fila de alunos interessados em desenvolver algum tipo de habilitação artística e, geralmente, todas as vagas disponíveis eram preenchidas por pessoas sem distinção étnica, credo ou classe social. Até onde a memória me permite alcançar, aqui havia aula de todos os tipos de instrumentos musicais, de dança, de artes plásticas, de teatro, formação de corais infantis, juvenis e de adultos. Lembro que, durante 15 anos que aqui ministrei aulas de violão, passaram por mim, pelo menos perto de cinco mil alunos. E hoje, com todos os desgostos, tristezas e melancolias do mundo, vejo que tudo isso acabou. Quando se fala em aula de arte ou de produção artística posso afirmar que sobrou muito pouco, ou seja, alguma coisa na área de dança, de teoria musical e de artes plásticas. Na verdade, como os fatos comprovam, os espaços que antes eram preenchidos por milhares de alunos interessado em aprendizagem e aprimoramento artístico, estão hoje ocupados por ratos, baratas, pulgas e cupins. Que triste e melancólico desfecho. Isto é absolutamente deprimente.

E como chegamos a isso? Através de uma diminuta síntese histórica, não é difícil entender as causas do que hoje encontramos aqui. Senão vejamos: 1) gestões equivocadas por falsas interpretações do que vem a ser o sentido da arte na formação do gosto e desenvolvimento espiritual do ser humano; 2) gestores que não estavam preocupados com atividades artísticas e sim com outros projetos sem qualquer conexão com os fundamentos filosóficos de uma escola de arte; 3) gestores incompetentes que, ao invés de desenvolver a pedagogia da arte e implementar a produção artística, faziam do CAUA local de encontro para reuniões de todos os matizes, inclusive de partido político; 4) falta de um quadro de professores efetivos pois os que aqui haviam, migraram para a graduação no Departamento de Artes, outros migraram para fora do Estado, e outros ainda se aposentaram. E nos últimos capítulos desse drama artístico selvagem, a opção que sobrou foi contratar professores sem qualquer titulação profissional, para aqui ministrarem aula. E desta forma se deu o final da novela que, com certeza, não vale a pena ver de novo.

E assim, infelizmente, depois de trilhar tais caminhos tão sinuosos, chegamos aqui onde estamos agora, ou seja, no não-lugar. O que fazer daqui pra frente? Para responder a esta pergunta, temos duas propostas: ou ficamos no não-lugar da desolação com o risco concreto de perder o lugar reservado para os artistas e as artes dentro da UFAM, ou precisamos urgentemente de inventar maneiras para sair desse buraco negro. Eu acho que deixar ficar como está não faz o menor sentido; nem para a comunidade que tanto necessita disso aqui funcionando e nem para os futuros gestores da UFAM. Afinal de contas, uma universidade sem atividades artísticas é uma universidade manca. É preciso nunca perder de vista que o conhecimento não se transmite somente através da ciência. A emoção, o sentimento, a imaginação, a criatividade, a memória, a disciplina, são elementos da psicologia humana que a arte usa para imprimir conhecimento e desenvolver o homem em sua plenitude. Os gregos já sabiam disso.

Vivemos hoje numa época de crise. Só para citar algumas: crise de gripe suína, crise financeira internacional determinada pelos corruptos e malandros de Wall Street, crise no Congresso Nacional promovida pelos meliantes engravatados que compram passagens, ambulâncias e castelos com dinheiro que o povo paga de impostos com tanto sacrifício; é crise no judiciário que não julga os 40 ladrões de Ali Babá, que não pune os meliantes engravatados de Brasília e de outras casas legislativas pelo país afora, entretanto, manda soltar banqueiros, doleiros e mensaleiros. E tem outras crises mais abrangentes como o aquecimento global, a destruição da Floresta Amazônica pela fome insaciável do capitalismo internacional e nacional, a miséria e a violência de cada dia e de todos os dias batendo na porta de cada um de nós.

Entretanto, é bom sempre lembrar que os momentos de crise não são feitos para a gente entregar os pontos e ficar prostrado na lona com lamentos e choros. Pelo contrário, os momentos de crise são momentos propícios para a gente encontrar respostas aos problemas, descobrir trilhas válidas e alcançar a saída. E para começar a solucionar os problemas do CAUA temos as seguintes sugestões, todas de caráter urgente:

1 – Revisão e consertos dos espaços físicos do CAUA onde se fizer necessário.

2 – Contratação de quadro de professores para o CAUA. Sem um quadro de professores habilitados jamais conseguiremos dar qualquer passo para tirar a instituição da crise.

2 – Instrumentalizar o CAUA com os instrumentos necessários para que os alunos possam desenvolver suas sensibilidades e técnicas artísticas.

3 - Implementação no CAUA de cursos profissionalizantes de Música, Artes Plásticas, Dança, Teatro, etc., ambas reconhecidas pelo MEC, como existem em outras universidades brasileiras.

4 – Implementação de cursos de pós-graduação a nível de especialização e mestrado na área de Artes.

4 - Implementação de Cursos Livres para a clientela que não se propõe a passar pelo Curso Profissionalizante.

5 – Com o quadro de professores estabelecidos, implementar com os alunos do CAUA pequenas orquestras, duetos, trios, bandas, coros infantil, juvenil e adulto, grupos de teatro, exposição de artes plásticas, grupos de dança infantil, juvenil e adulto, etc.

6 – Implementar parcerias com o Departamento de Artes e outros Departamentos da UFAM, com a UEA, com instituições privadas e com órgãos fomentadores de cultura do Estado e do Município. Vale ressaltar que a verdadeira parceria só existe quando ambos os parceiros suprem seus interesses e necessidades. Parceria em que somente um dos lados leva vantagem não é parceria; é conversa de botequim entre malandro e otário.

7 - Melhoria salarial da bolsa-estágio dos músicos da Orquestra Vozes da Ufam para que os mesmos possam assumir compromissos mais abrangentes tanto com os ensaios da orquestra quanto desenvolver atividades pedagógicas no próprio CAUA, desde que orientados por um professor concursado da instituição.

8 - Negociação para resgatar os espaços da TV UFAM e dos Cursos de Educação a Distância que ora ocupam as dependências do CAUA, para que esses espaços voltem a funcionar com atividades pedagógicas de Arte e de produção artística.

9 – Como sonhar não ocupa espaço, batalhar para a construção de um Teatro para que a produção artística do CAUA possa ser divulgada à comunidade universitária e extra-universitária. É bom lembrar que o espaço físico deste teatro já existe e está reservado na planta original do Campus Universitário.

Não pretendemos nesse momento colocar em foco todas as questões que precisam ser solucionadas. No meu ponto de vista, o que foi dito aqui, são apenas os primeiros passos que serão dados para que possamos sair do abismo do não-lugar e subir a montanha à procura de novos horizontes e ares menos poluídos que hoje ocupam os espaços do CAUA.
Outros passos serão necessários e certamente se concretizarão com o apoio da primeira mulher a gerenciar a UFAM em cem anos de história, nossa simpática e Magnífica Reitora Márcia Perales Mendes Silva, do seu Vice-Reitor Hedinaldo Lima, da equipe de Pró-Reitores, Assessores Especiais, Diretores de Órgãos Suplementares, todos convidados para gerir a UFAM nos próximos quatro anos. Além dos atores citados acima, quero lembrar ainda que é imprescindível o apoio tático e logístico dos professores, técnicos e administradores que desempenham suas funções aqui no CAUA. Se existe um slogan que possa ser usado nesse instante para tirar o CAUA da UTI da desolação é: “gestão, investimento e trabalho”.

Pra terminar, quero dizer que me sinto muito honrado por ter recebido pessoalmente o convite da Magnífica Reitora Márcia Perales para assumir a diretoria do CAUA. Quero também dizer que aqui nada farei somente me apoiando nos meus desejos, sonhos, idealismos e delírios artísticos clorofilados. Volto a repetir: precisarei do apoio, da esperança e da ajuda de todos, principalmente dos artistas que por aqui circulam querendo concretizar seus projetos artísticos selvagens. E sendo assim, farei o possível e o necessário para resgatar o CAUA das cinzas do abandono e dos desencontros. Para isso o primeiro passo está sendo dado aqui e agora; antes tarde do que muito mais tarde.

Saudações aos que aqui se encontram presentes e os meus sinceros votos de esperança, como diz Guimarães Rosa, num límpido, lépido e luminoso futuro artístico para o Centro de Artes da Universidade Federal do Amazonas e para os artistas amazonenses. Meu fraterno muito obrigado a todos.




Adelson Oliveira dos Santos


Manaus, 06 de julho de 2009


Adelson Santos é formado em Letras, Maestro, Compositor e Professor de música da UFAM.


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domingo, 19 de julho de 2009

ALÉM DO QUADRADO

de Adelson Santos *
07/2009

Sim. E daí? Depois que você sacou a ética da malandragem inventada pelos de cima para dominar os de baixo. Depois que ultrapassou o limite dos preconceitos inventados pela moral religiosa. Depois que cansou de olhar o mundo pelo olhar do outro. Depois que ficou horrorizado com o genocídio físico e moral inventado pelos totalitarismos de esquerda ou de direita. Depois que descobriu que os regimes econômicos e políticos, seja democrático ou socialista, até hoje não resolveram os problemas do homem e nem da sociedade. Enfim, depois que encarou os olhares preconceituosos da vizinhança, que se desvencilhou de todas as amarras civilizatórias, que desconstruiu à marteladas, socos e pontapés, o quadrado que tentaram colocar você para fazer parte da manada. Depois de tudo isso o quê fazer então? O que fazer quando você lança um olhar inteligente para dentro de você mesmo e descobre que fora das coleiras e amarras civilizatórias você se transforma num super-homem que vive no vazio, na angústia e na solidão? Tem liberdade mas não sabe o que fazer com ela. Tem poder mas não compreende o sentido do poder. E daí? Diante de tanta inutilidade existencial, será que vai querer voltar para o seu mundinho de antigamente ou será que você espera construir um novo mundo de certezas, esperanças e tranqüilidades. Sei não. Pelo andar da carruagem, pelo ritmo da dança, tudo indica que você não vai chegar em qualquer lugar fora das coleiras e das amarras civilizatórias. A gente sabe que a resposta não está no consumo, no desperdício, no luxo, no carro do ano, na viagem de férias, no aparente sucesso familiar, no bom emprego, na maracutaia e na malandragem. Acho que fora do quadrado em que cada um se insere, só existe o vazio, o oco, o tempo e o espaço infinito. Acho que não estamos preparados para viver com tais conceitos. Nossos intelectos e sentimentos se perdem diante do absoluto. Somos talhados para viver nos universos relativos e obsolescentes da manada ambulante. É a lei. É a regra primordial da vida. A cultura e os seus diversos padrões culturais são os mecanismos da civilização, os ganchos inventados para que possamos seguir a viagem e chegar sei lá onde, talvez, no fundo da mãe terra ou na superfície de outro planeta. Quem sabe se por lá, num outro planeta, o homem cria juízo. Acho que seria mais lógico se a civilização investisse toda a grana dos arsenais atômicos e das armas de guerra na melhoria e no bem estar das pessoas e das sociedades. O problema é que a civilização não é lógica; a civilização é quântica. E tudo segue assim na base dos acasos, vicissitudes e aleatoriedades. E sendo assim, com uma atitude e um olhar inteligente pra dentro de nós, a opção que nos sobra é celebrar a vida enquanto temos vida. Então viva a perseverança do homem que teima em descobrir a saída simplesmente porque ele sabe que a saída existe. Para quem saiu das sombras das cavernas mal iluminadas e hoje viaja pelas fronteiras do espaço sideral, acho que já estamos no lucro. O resto fica por conta... sei lá por conta de quê fica essa porra-louquice toda.

* Adelson Santos é formado em Letras, Maestro, Compositor e Professor de música da UFAM.


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SE

Se você não participou da tragédia de ter um filho morto por absoluta falta de cuidados médicos e hospitalares. Se você nunca abandonou pelo menos duas mulheres em sua vida. Se você nunca brochou diante das mulheres mais bonitas e gostosas que um dia você quis comer na vida. Se você nunca se decepcionou porque descobriu que os amigos em que tanto confiava não passavam de traíras, sanguessugas e rêmoras militantes. Se você nunca cruzou com pelo menos dois malandros safados e imprestáveis e os mandou pra puta que os pariu sem qualquer constrangimento. Se você nunca bateu o seu carro pelo menos cinco vezes na vida. Se você nunca mandou sua mulher mais de uma vez pra casa do caralho. Se você nunca dispensou pelo menos três namoradas por causa das suas mediocridades, burrices e chatices ambulantes. Se você nunca descobriu que a namorada da hora não passava de uma ratazana chauvinista com fixações mal resolvidas ainda da fase anal. Se você nunca dispensou o poder só pra provar à si mesmo que o poder é uma droga que faz muito mal à cabeça, ao corpo e às vísceras. Se você nunca encarou uma perda, qualquer perda, como uma prova de que no fundo do poço existe uma mola que te joga pra cima em direção ao recomeço. Se você nunca brincou e jogou com a sua vida colocando-a numa corda bamba para atravessar o abismo rumo às suas utopias. Se você nunca teve coragem de acreditar em você mesmo para deixar de ser alienado pelo lero-lero fiado e fosco de padres e pastores. Se você nunca pegou chifre de uma mulher, ou de várias mulheres, e virou o maior corno da paróquia. Se você nunca abandonou um filho na estrada por absoluta falta de condições sociais e econômicas para criá-lo. Se você nunca teve a coragem de dizer na cara de uma mulher: não te quero mais. Se você nunca ouviu de uma mulher que você não é o cara que ela procura pra ser a sua cara metade. Se você nunca fez nenhuma dessas coisas é porque, das duas uma: ou você é um felizardo ou a vida passou por você e você não viveu e nem experimentou nada da vida. Se você é um felizardo, parabéns. Se está feliz consigo mesmo, parabéns outra vez. Cada um é feliz a sua maneira. Entretanto, na hipótese de você não ter experimentado nada na vida, sobra uma pergunta: o que você fez então com a sua vida? Já sei. Ficou comportado no meio da manada, obedecendo como um cordeiro as regras morais inventadas pelos pais, pela escola, pela igreja, enfim, pela civilização, a máquina de fazer alienados e loucos. E sendo assim, pelo visto, tudo indica que ficou esperando a vida passar, ressentido e odiando a si mesmo porque a vida a vida passou e ficou acreditando no impossível, ou seja, que vai gozar a vida somente depois da morte quando receber o grande prêmio de chegar ao reino dos céus para, finalmente, sentar a direita do Deus Pai. Por que à direita e não à esquerda? Acho que o importante é estar sentado, ou em pé, desde que seja perto da diretoria. Ou não? Resta ainda a ultima pergunta: será que essa diretoria existe de verdade ou é invenção dos intermediários que se auto-intitulam representantes de Deus aqui na terra? Pelo sim ou pelo não, vamos pra frente porque ficar parado é sinônimo de retrocesso. E se por um acaso você chegar à parada do Deus Pai, vou lhe pedir, por favor, que me mande noticias. Caso contrário, prefiro encarar a vida como ela se mostra, e usufruir dos meus encontros e desencontros aqui e agora.


Adelson Santos é formado em Letras, Maestro, Compositor e Professor de música da UFAM.


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sexta-feira, 10 de julho de 2009

NOSSA MÚSICA POPULAR DE CADA DIA

de Adelson Santos *
02/2009

Nesse texto, a sigla MPB (música popular brasileira) significa a música que se origina em uma determinada região do país. A princípio é usada de forma utilitária por uma pequena comunidade com funções de lazer, de trabalho, transmissão de idéias, emoções, sentimentos, ou de religião. Em seguida, após se adequar aos interesses mercadológicos da Indústria Cultural no processo capitalista de Produção x Consumo, é então difundida para milhões de pessoas através dos meios de comunicação de massa como o Rádio, a TV, o Cinema, etc.
Como exemplo, vamos aos fatos. Entre outros gêneros, o baiano tem o Axé Music, o Olodum e o Samba-Raggae. O carioca tem o Samba, a Marcha e o Choro. O paraense tem a Lambada e o Carimbó. O mineiro, o paulista, e vizinhanças geográficas, têm a Música Caipira e suas variantes industrializadas rotuladas de Música Sertaneja. O pernambucano tem o Frevo, o Maracatu e outros gêneros que se espalham pela região nordeste incluindo aí o Baião, o Forró, o Xote, o Xaxado, todos conhecidos como música nordestina. Como dá de notar, todos os gêneros musicais citados tem suas raízes culturais em uma dada comunidade regional do país. Depois de empacotados pela Indústria Cultural são divulgados para fora de suas aldeias e ganham espaço no mercado nacional, e alguns deles, no internacional.
Um fantasma que ronda a MPB é a questão da permanência. Para garantir o rótulo de MPB não basta receber superexposição na mídia e fazer sucesso em férias de verão e/ou numa novela ou programa da TV Globo. Além disso, é preciso permanecer no cenário musical por um longo tempo, se possível por décadas. Caso contrário, por falta de difusão, de exposição na mídia e de público consumidor, os gêneros musicais caem em desuso e são retirados da arena musical. Podemos citar como exemplo o Maxixe – mistura do Lundu com a Polca - que na década de vinte, mesmo sem a difusão do rádio que ainda não existia, foi o gênero que mais fez sucesso em todo o país. Entretanto, já na década de trinta, perdeu lugar pro samba e sumiu do cenário artístico para cair no buraco negro do esquecimento musical coletivo.
Às vezes, alguns gêneros de MPB sofrem mutações estéticas como resultado da mestiçagem cultural e evoluem para formas musicais em que novos elementos são incorporados à forma antiga surgindo então um novo gênero. Podemos citar como exemplo a Lambada, que é a mistura do Carimbó com gêneros caribenhos como a Cúmbia, o Merengue e o Zouk. Outro exemplo de mestiçagem cultural é a Bossa Nova, um dos gêneros brasileiros mais conhecidos e difundidos no mundo da música, que é uma composição onde se misturam os elementos harmônicos do jazz, a melodia romântica das canções portuguesas e o ritmo sincopado do samba.
Como podemos deduzir pelos exemplos e argumentos citados acima, a maior parte dos Estados brasileiros tem a sua representatividade musical com seus gêneros musicais característicos e diferenciados tanto na forma quanto no conteúdo. E sendo assim, trago para o debate a pergunta que não quer calar: cadê a música popular do amazonas, digo, do amazonense de Manaus? E se existe a tal musica amazonense, por que até hoje não atingiu o status de música nacionalizada, ou seja, difundida em todo o território nacional como é o Axé Músic, o Samba, o Baião, etc.? Será que é por causa da muralha da clorofila que nossa música não ultrapassa as fronteiras do rio e da floresta? Acho que não. Se fosse por isso a Lambada não teria saído do Pará para correr o mundo. Ou será que é a falta de raízes culturais que possam imprimir à nossa música a marca da originalidade, condição essencial para que possa receber o rótulo de música amazonense. Ou será porque nossos compositores não conseguem migrar e se estabelecer nos grandes centros difusores de cultura como o eixo Rio-São Paulo, para de lá lançar e divulgar sua obra para todo o país? Até onde consigo enxergar, os que pra lá foram, voltaram contando histórias de Sherazade sobre os mitos da cidade grande; sucesso musical, afirmação e permanência no cenário nacional que é bom, nada. Ou ainda numa conjectura mais esdrúxula: será que o amazonense não se interessa por música representativa porque, o que ele quer mesmo é curtir os mitos delirantes da Paris dos Trópicos com seus festivais de Ópera, de Jazz, de Cinema?
O que posso dizer sobre essa utopia da Paris dos Trópicos, antigo delírio dos coronéis de barranco e da oligarquia borracheira, é que, pra quem está na mamata como convidado especial faturando projeção social e ainda por cima um troco, com hospedagem e alimentação grátis em hotel cinco estrelas, com passagem de ida e volta, com toda essa mamata à disposição, é só elogios ao evento e aos promotores do mesmo. Entretanto, enquanto isso, os artistas da terra ficam só olhando e chupando o dedo com caras e bocas de eterno mestiço da aldeia colonizado, com uma grande dor-de-cotovelo por ver sumir a grana da cultura pelo ralo do desperdício. E tudo, infelizmente, para bancar os delírios da burguesia clorofilada que “quer mostrar o que não tem” e “parecer o que não é”. Triste o destino de uma cidade em que os “donos da cultura” preferem, de um lado, induzir o artista mestiço ao silencio, ao esquecimento e à obscuridade do sótão, e de outro, fazer da arte um objeto de manipulação política para aparecer no Fantástico e conquistar votos. E aí já viu: onde político se mete, considerando as raríssimas exceções, só tem sujeira, corrupção e bandalheira.
E o público, como fica nessa utopia surrealista da Paris dos Trópicos? Bem. Os de cima ocupam a platéia e os camarotes do teatro para ver e ouvir as divas e os divos em ação garimpando um troco com a estética post-mortem. Enquanto isso os de baixo se divertem como podem: ou na lateral do teatro vendo o espetáculo nos telões High Tech de última geração; ou na porta do teatro vendo os famosos de hollywood e o “Rambo do Amazonas” (tanto o nome quanto o personagem são ridículos) desfilarem no tapete vermelho; ou ainda em alguma arena fantasiados com abadás coloridos atrás de um Trio Elétrico insuportavelmente barulhento. Tudo para sentir que não estão mortos vivendo com charlatanismo.
Digressões à parte, a verdade é que no cenário da MPB a lacuna da música popular amazonense continua vazia. O que a gente encontra como proposta para preencher essa lacuna vazia? A Toada de Boi, a Ciranda, o Beiradão, a MPBA (Música Popular Brasileira feita por compositores amazonenses), o FECANI. Pelo visto nenhum dessas propostas até hoje conquistou o sucesso e o status de permanência no cenário da MPB. Se alguma coisa conquistou foi o sucesso regional.
Toada de Boi? Não convence. Letras de música carentes de universalidade com poética voltada para a disputa entre o azul e vermelho, coisa que só faz sentido ao pessoal da ilha. Música redundante na melodia, no ritmo e na harmonia. Como subproduto do folclore a música fica bem contextualizada. Na arena, encanta e faz o povo dançar. Entretanto, como proposta musical, até hoje não conseguiu extrapolar as fronteiras da clorofila. Todas as tentativas que foram feitas para divulgar a toada de boi nacional e internacionalmente, terminaram no não-lugar.
E a Ciranda? Gênero musical resultado de miscigenação cultural entre guitarras, teclados, Carimbó e outros gêneros caribenhos. Na dança fica bem encaixada. Porém, como proposta musical para preencher a lacuna vazia no cenário da MPB, também não convence. Não consegue sequer atravessar o Rio Negro pra chegar às rádios de Manaus.
E o Beiradão? Propagado maciçamente em todo o Amazonas pelas rádios de Manaus e do interior na década de 70, e mais shows ao vivo com o sax alto de Teixeira de Manaus com direito a Disco de Ouro pelo sucesso de vendas. Mistura de Carimbó, Calipso, e outros gêneros caribenhos. Música de pouca desenvoltura melódica e harmônica, porém, ritmicamente dançante e envolvente. Mas também não alçou vôo para além da floresta e do rio. Resiste heroicamente pela periferia, sufocada entre as preconceitos da cidade, as lendas do rio e os mitos da floresta.
Que mais? Temos ainda a MPBA, ou seja, música popular brasileira de autor amazonense. Essa corrente de compositores que a partir da década de 60 inaugura a produção musical local, nada mais faz do que usar fórmulas melódicas, rítmicas e harmônicas sedimentadas pela Indústria Cultural. Para alcançar o status de música representativa do Amazonas falta tudo, ou seja, a cor local, a raiz cultural, a permanência e a difusão nacional. Isto significa dizer que jamais servirá como proposta de música representativa da região. É muito comum um ou outro compositor fazer sucesso regional com esse tipo de música. Merece aplausos. Entretanto, isso não tem nada a ver com música representativa. Isso tem tudo a ver com música autoral, de compositor conhecido, estruturando obra com formas popularizadas no mercado musical. Para atingir o status de gênero de MPB tem que permanecer no mercado e ser divulgada por todo o país.
E o FECANI, propagado como o maior festival de MPBA do norte? Antigamente a partir da década de 60, os festivais tinham duas funções relevantes: 1) como palco de contestação política à Ditadura Militar implantada no Brasil a partir de 64; 2) como meio de descoberta de novos compositores de MPB para suprir o mercado. Por duas décadas os festivais tiveram esses objetivos. Depois virou arraial e festa da padroeira e/ou um sortudo negócio musical que serve de curral eleitoral para os políticos da hora, além de uma boa negociata financeira para os seus promotores e os “ganhadores do primeiro lugar”. Enfim, a música deixou de ter funções artísticas, estéticas e ideológicas para virar fetiche, mercadoria descartável e objeto de promoção pessoal.
E assim a gente segue com a nossa música popular de cada dia. Só não sei pra onde. Como diz Cézane: “em arte, ou se é revolucionário ou plagiário”. Do jeito que a canoa segue na correnteza, acho que estamos fadados ao status de plagiário por mais, pelo menos, uns quinhentos anos.

* Adelson Santos é formado em Letras, Maestro, Compositor e Professor de música da UFAM.


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sábado, 4 de abril de 2009

“EU TENHO ORGULHO... DE SER AMAZONENSE”

De Adelson Santos (12/2008) *

O filósofo Platão classificava os artistas de dois modos: os apologistas, ou seja, aqueles que exaltavam as qualidades da república, e os “amolecedores dos costumes” que, ao contrário, denunciavam as mazelas da mesma república. Para os apologistas, Platão ofertava os lazeres do ócio republicano. Para os “amolecedores dos costumes”, ele mandou jogar fora da cidade, igual como fez Mao Tse Tung na sua deletéria revolução cultural para implementar o comunismo na china.
Está passando na televisão um vídeo onde alguns artistas famosos do reino da clorofila, aparentemente felizes, alegres e sorridentes, cantam a pleno pulmões: “eu tenho orgulho... de ser amazonense... eu tenho orgulho... de ser amazonense”. Que lindo. É difícil de ver e ouvir isso, ou seja, amazonense falando bem de Manaus ou do Amazonas. Na verdade, acho muito bonito cantar que a terra onde a gente nasceu é a melhor do mundo. É uma prova de afeto dos grandes. Mas pra que isso aconteça, ou seja, pra você propagar que ama a terra onde nasceu, é preciso que esta terra ofereça condições sociais, culturais e econômicas para que todos se sintam bem e felizes. Quando digo todos, estou me referindo ao sentido literal da palavra, ou seja, absolutamente todos, e não apenas para “os de cima” e mais uma dúzia de artistas apologistas cantando aparentemente felizes, alegres e sorridentes: “eu tenho orgulho... de ser amazonense”.
Acho que Manaus com todos os delírios de parecer que é uma cidade cosmopolita e civilizada, habitada por um povo cordial que trata bem os que chegam de fora, pra mim nada disso me incentiva nem a cantar, como fazem os artistas apologistas, e nem elogiar Manaus como uma cidade agradável para se viver. E além do mais, acho a propaganda feita pelos apologistas, enganosa e alienante, daquelas que tentam transformar uma mentira em uma grande verdade. E toda vez que toca a tal música na televisão com os artistas sorridentes, imitando aquele célebre jingle “We Are The World” (qualquer semelhança é mera coincidência, até mesmo porque “We Are...” foi feito para arrecadar fundos para a fome na África, e o “Eu Tenho Orgulho...” foi feito para fazer propaganda política), enfim, eu fico me perguntando se os artistas apologistas acreditam mesmo naquilo que estão cantando, ou se apenas estão representando e pondo suas vozes à serviço da propaganda enganosa, simplesmente para faturar o leite das crianças com a mixaria paga pelo Estado pelo trabalho de cantar no jingle.
Sinceramente, bem que gostaria de propagar da mesma forma o meu amor por Manaus e de ter orgulho por ser amazonense. Gostaria mesmo, de verdade. Entretanto quando vejo em propaganda de outdoors espalhados pela cidade que os tataranetos de Ajuricaba estão sendo iludidos “pelos de cima”, com as ilusórias e redundantes promessas de que estão construindo o futuro (é bom lembrar que esse negócio de construir o futuro é só pra enganar “os de baixo” porque pra eles, “os de cima”, estão todos é curtindo o presente da “dolce vita” clorofilada). Quando vejo os mestiços da aldeia recebendo educação de terceiro mundo, ou seja, a famosa educação dos excluídos, prontos para virar lixo humano na primeira curva do rio; morrendo pelos corredores dos hospitais por falta de leito e de médicos; apanhando sol e chuva em paradas de ônibus (isso quando tem ônibus); vivendo sobressaltados em tempo de chuva pelas enchentes dos igarapés que “os de cima” invadem as margens para construir suas casas em condomínios de luxo; saindo de casa cinco horas da manhã para trabalhar no distrito industrial e voltar sete horas da noite para depois ganhar um salário de fome no final do mês, sinceramente, tudo isso me deixa de língua travada para dizer que “eu tenho orgulho de ser amazonense”.
Quando entro numa de flanar pelas ruas de Manaus - na verdade esgotos a céu aberto - e vejo assaltantes perseguindo e roubando pessoas de bem em frente de casa em plena luz da manhã; filinhos de papai estacionando seus Hilux e Hiunday do ano em fila dupla impedindo o trânsito de fluir normalmente (cadê o DETRAN que só serve para incentivar a indústria de multas); flanelinhas com cara de fome pedindo pro “patrão” um troco pra comprar um prato de comida. Quando vejo na mídia os mesmos e antigos políticos medíocres enganando o povo com seus discursos teias, seduzindo com falsas promessas os pobres corações amantes do nosso Brasil, ofertando um quilo de feijão, uma receita médica ou uma bolsa família em troca de voto (isso pra não falar de outras canalhices e sujeiras mais abrangentes que as TVs escancaram nos noticiários todos os dias), sinceramente, se eu tivesse sido convidado para cantar: “eu tenho orgulho... de ser amazonense”, com certeza jamais entraria nessa presepada. Primeiro por ser uma propaganda enganosa feita para iludir e ludibriar os pobres corações amantes dessa coisa indefinida, enigmática e mal resolvida chamada Manaus. Segundo porque isso contraria minha consciência artística, nega minha integridade profissional, e perturba o pouco de lucidez que consegui preservar, com bastante esforço, junto com a minha dignidade de cidadão.





* Adelson Santo é professor de música na Universidade Federal do Amazonas
Tel: 32364960 // 99919237
Air Mail: santosadelson@hotmail.com

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

NOSSA PÁTRIA MAE SENIL

NOSSA PÁTRIA MÃE SENIL

de Adelson Santos *
02/2009

A maioria do povo brasileiro ainda não aprendeu, e nem sei quando vai aprender, a viver afinado com as regras da civilização. Quando digo “regras da civilização” refiro-me, entre outras coisas, aos princípios éticos que orientam as relações humanas e práticas sociais construídas na base do respeito, da moralidade, da solidariedade, da dignidade e da cidadania. E sendo assim, se a prática social do povo não é orientada por tais regras, o que se vê por aí em cada esquina são as pessoas se agredindo à bofetadas, ofensas gratuitas, discriminações morais e físicas, e assim seguem, todas dançando no ritmo do “farinha pouca meu pirão primeiro” e no compasso da “lei de Gerson” – aquele que aprendeu a levar vantagem baseado na filosofia das chuteiras; tudo isso para que cada individuo possa conquistar seu lugar ao sol e olhar o mundo como se o centro do mundo fosse o seu próprio umbigo.
E por falar em umbigo, vamos afastar o olho do nosso, para tentar enxergar a nossa Pátria Mãe Senil como se fosse uma grande pirâmide. Olhando de longe, tudo parece estar na mais absoluta normalidade. Entretanto, olhando de perto, quando a gente dá um close-up nos detalhes, de qualquer ponto de vista que a gente tente interpretá-la, o que vemos desde a base até o topo, sem qualquer bias ideológica, é um simulacro de nação formada por um povo com excelentes dotes artísticos e esportivos, porém, na esfera política e social, ainda se encontra na idade da pedra lascada pois ainda nem sequer aprendeu a brigar para conquistar seus direitos de cidadão. E quando tenta dá um passo para conquistar tais direitos, acaba se deparando com alguns equívocos, pois, como é fácil perceber, simulacro de nação e povo estão sempre mal resolvidos em vários sentidos: na moral, na justiça, na política, na moradia, nas relações sociais, no trabalho, nos salários, no trânsito, e tantos outros setores da atividade humana. A esbórnia é tão generalizada que nos induz à seguinte pergunta: de onde e como surgiu essa história de sentidos tão mal construídos, tão mal resolvidos, feita de poucos encontros e exagerados desencontros entre os direitos do cidadão e aquilo que o cidadão recebe como recompensa de nossa Pátria Mãe Senil? Ao meu modo de ver, não é difícil encontrar as respostas. Senão vejamos.
Voltando atrás no tempo e no espaço histórico, é fácil analisar e compreender que tudo começa com a chegada dos colonizadores portugueses e a imediata escravidão dos índios para trabalhar, entre outras coisas, na derrubada de pau-brasil e no seu carregamento até as caravelas. Em troca desse trabalho escravo os portugueses davam aos índios espelhos, apitos, chocalhos e outras bugigangas mais. E sendo assim, com o escambo e o trabalho escravo indígena, se inicia o ominoso processo de aniquilamento e desmoralização de uma das raças que formaram o povo brasileiro, e o que é mais grave, seu genocídio físico e cultural sob o olhar do império português com as bençãos da santa madre igreja católica.
Depois, também de olho no comércio europeu, os patriarcas de Casa Grande e Senzala engrossaram o caldo da escravidão com a inserção do negro na produção da cana de açúcar, café, cacau, mineração de ouro e pedras preciosas. Mais um processo civilizatório execrável contra outra raça que contribuiu para moldar o físico, o caráter e a cultura do povo brasileiro. Uma raça que, mesmo depois de abolida a escravatura, a grande maioria, foi condenada à pobreza, à miséria, ao ostracismo, ao silêncio e à margem da história até os dias de hoje. Tudo por conta da discriminação social e da crença na superioridade da raça branca.
Mais recentemente, com a vinda de outros povos europeus e asiáticos para incrementar o capitalismo industrial na república velha, onde o caldo de raças e culturas ficou tão misturado e tão diluído que, depois de diluir o sangue da raça tão completamente, acabou por diluir também as configurações da alma. E daí surgiu o mito da miscigenação colonial e republicana, louvado e mitificado como “a mestiçagem mais perfeita do planeta”. É uma pena que “mestiçagem perfeita” com miséria e desigualdade social não serve pra nada. Pelo visto somos os campeões do mundo na injustiça, na corrupção política, nos baixos salários, nos juros altos, no pagamento de impostos, na violência, no analfabetismo e outras coisas mais que envergonham a todos.
O que sobrou dessa misturada toda é o que vemos da base ao topo espalhado pela pirâmide: um povo sem eira nem beira, que morre de tanto esperar pelo pão que o diabo já comeu, que teima em acreditar que o Brasil é o país do futuro e, também, pra completar o delírio surrealista, abençoado por Deus. Bem, nesse caso, é preciso analisar melhor essa premissa porque ela pode induzir à falsas conclusões. Nesse caso é preciso ver de que Deus estamos falando: do Deus dos ricos ou o do Deus dos pobres; do Deus que constrói condomínios de luxo ou do Deus que constrói favelas; do Deus que protege a minoria ou do Deus que abandona a maioria; do Deus que ilumina os eleitos ou do Deus que apaga os “pecadores”; do Deus que lembra os bons ou do Deus que olvida os “maus”. Precisamos rever nossos conceitos e passar essa história a limpo. Eu particularmente acho que Deus não está nem aí pra quem quer que seja até porque, depois que ele criou o mundo, se aposentou desde quando expulsou Adão e Eva do paraíso.
E assim, sob o estalido dos chicotes e os estampidos dos arcabuzes, se formou o povo do “Deus é brasileiro”. Um povo que pouca ou nenhuma importância dá às “regras civilizadas” que é a base para a formação de uma sociedade aberta e democrática. Dizer que temos democracia no Brasil é retórica cínica e falaciosa. Nossa democracia é uma falsa democracia, ou seja, uma democracia forjada na troca de votos por um pacote de fraldas, um quilo de feijão, uma telha, uma consulta médica, ou um emprego como funcionário público. Uma democracia das elites, como sempre, com políticos corruptos mandando e levando vantagens em todas as paradas enquanto que o povo, espera obediente no meio da manada, obedecendo ordens na base do medo, da porrada e da servidão compulsória.
A pirâmide chamada Brasil foi construída com os esteios da imoralidade e da ética totalitária. E isto tem uma conexão direta com os colonizadores que inventaram o genocídio indígena aos olhos complacentes da igreja católica, que estupraram nossas princesas índias, negras e mestiças e encheram nossa Pátria Mãe Senil de filhos bastardos, que dilapidaram e roubaram nossas riquezas para sustentar o luxo da aristocracia nas cortes brasileira e portuguesa. Com essa moral torta sedimentou-se aqui um povo com a auto-estima usurpada, com uma mordaça na boca e uma venda nos olhos, com a cordialidade subserviente como estratégia de circulação social, com a malandragem como estratégia de sobrevivência.
E deu no que deu. Infelizmente, o que sobrou é o que tai: um povo que circula bem no samba, no carnaval, na música popular, no futebol, no pagode, na festa, na cerveja, no baseado, na moda, na fórmula 1, enfim, como dá pra notar, em atividades propícias à geração de heróis, ícones e mitos. E vai mal onde? Acho que em todo o resto: na mendicância infantil e adulta, nos jovens que se drogam em busca de sentido existencial, nas religiões das pequenas igrejas e grandes negócios, na violência das balas perdidas pelas esquinas, na corrupção política e nos políticos medíocres, no capitalismo selvagem, no trabalho escravo e nos salários de fome, na cultura da alienação, na justiça podre que protege bandidos e estupradores, na educação dos excluídos, na arquitetura pós-moderna que enche o país de favelas, no inferno do trânsito engarrafado a qualquer hora do dia e da noite, na ciência dos foguetes que explodem nas plataformas de lançamento, na filosofia existencialista do sufoco e do desespero, na literatura sem leitores, enfim, no escaldante verão de um meio-dia tropical.



Adelson Santos é formado em Letras e Maestro, Compositor e Professor de música da UFAM.


Outras leituras no blog: www.adelsonsantos.blogspot.com

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

DO OTIMISTA E DO PESSIMISTA

DO OTIMISTA E DO PESSIMISTA

De Adelson Santos*


O otimista tem razões de sobra para ver o mundo como um lugar maravilhoso, onde as coisas existem em suas dimensões espaciais e temporais para que ele possa se tornar um campeão e um vencedor na vida.
Já o pessimista, pelo contrário, que nunca consegue concretizar qualquer coisa, por viver sempre brigando para driblar os desencontros do destino, por se dar mal em todas as experiências e aventuras que a vida lhe proporciona, acaba achando que o mundo é uma merda ou uma montanha de lixo.
E sendo assim, como a totalidade do sistema social é feita de articulações entre os indivíduos, entre os indivíduos e o sistema social no qual estão inseridos, para o otimista, que sempre leva vantagem em todas as brechas onde se mete, o mundo é mesmo um lugar possível para viver e conquistar a dignidade; para o pessimista, que nunca leva vantagem em nada, apenas sobram os ressentimentos no peito, os sabores amargos na boca de alguma comida indigesta, além de uma remota e persistente esperança de que algum dia as coisas vão começar a acontecer pra ele.
Uma pena que a esperança do pessimista seja a chamada esperança podre, aquela feita de energia negativa que nunca incentiva a agir para conquistar qualquer coisa, deixando-o inerte e sem iniciativa até para levantar da cama e apagar a luz do quarto ou fechar a torneira que está pingando. Fica sempre esperando por uma chance que nunca chega, sempre fugindo da má sorte que nunca muda. O pessimista não constrói a sua fortuna porque quando vai ao seu encontro ela sempre se esquiva do seu caminho. O pessimista, enfim, não passa de um número que vive à margem da história, sempre vagando como um tronco oco nas correntezas de um rio. O pior de tudo é que ele não tem consciência da coisa e, mesmo se tivesse, de nada adiantaria porque a coisa (sistema social) é maquiavelicamente estruturado somente para o gozo das minorias onde o pessimista não consegue penetrar nem como figurante numa chanchada de terceira categoria. Portanto, para o pessimista, o que sobra em seu pensamento é a idéia de que Deus, algum dia, e bote dias nisso, vai começar a olhar por ele. É o que o mantém vivo, quer dizer, mais morto do que vivo.





*Adelson Santos é compositor e professor de música da UFAM.


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quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

A CONSCIÊNCIA DA COISA

A CONSCIÊNCIA DA COISA

de Adelson Santos *


Durante anos achei que o mal-estar que carregava comigo eram elucubrações vindas do inconsciente, perturbações e danações da alma, emanações do diabo - como mamãe falava - enfim, coisa de gente maluca que não se adequava ao mundo exterior porque era rotulado de chato e urtigão encrenqueiro, com um parafuso a menos no cérebro.
Porém, o tempo passou e mostrou-me que o mal-estar não era coisa minha e nem estava dentro de mim à-toa. Vinha de fora. Era tudo invenção alheia, mitos urbanos, bias ideológicas e falsas interpretações da realidade; uma pacoteira de estigmas que fui aprendendo a desconstruir pelas interseções da vida. Suas raízes foram cravadas nos preconceitos, nas discriminações sociais e étnicas, nas tradições conservadoras e autoritárias da família, nos fuxicos dos vizinhos, na moral totalitária e repressora da religião, enfim, nas ideologias que dividem a sociedade em classes onde alguns poucos se especializam em mandar enquanto a grande maioria se limita a obedecer.
A consciência da coisa não chegou de sopapo. Pelo contrário, foi se aproximando passo a passo, bem lentamente. Isso depois de muitos encontros, desencontros e reencontros, de algumas dezenas de mil quilômetros rodados pelas estradas esburacadas da vida, de abismos atravessados na corda bamba, de muitas idas e vindas tentando encontrar uma trilha válida para desvendar o mistério do meu horroroso e angustiante mal-estar.
E foi assim, em ritmo de bolero dançado à meia luz com uma ratazana carente e sedenta de prazer, que a consciência da coisa foi se aproximando. E para isto foi preciso analisar de vários pontos-de-vista os fios que teciam a teia do meu destino, dissecar a trama histórica em que estava inserido, assumir meu DNA familiar de pai carpinteiro e mãe doméstica, colher informações com professores e pessoas de vários níveis sociais, nos livros, na arte, traduzir a linguagem dos sinais para entender a representação dos símbolos inerentes à cultura por onde circulava.
Quando a consciência da coisa bateu no coração, na cabeça e nas vísceras, então a ficha caiu e eu pude ver que o mal-estar que carregava comigo não é nada que apareceu por acaso ou mera coincidência do destino. Na verdade é tudo uma grande armação diabolicamente idealizada pela malandragem militante para convencer com argumentos falaciosos que os de cima sabem das coisas e os de baixo precisam ouvir e aprender com eles.
A partir daí entendi o quanto as pessoas são manipuladas por ideologias tramadas na esfera do poder político, social e cultural. Tudo para que, os de cima, usufruam dos lazeres de qualquer sistema econômico, seja capitalista ou socialista, enquanto, os de baixo, além de nada usufruir de qualquer sistema, acabam à margem da história como lixo humano, sempre na periferia, brigando pela sobrevivência e acreditando que algum dia a sorte vai chegar.
Desde moleque, sempre fui metido a contestador. Sempre gostei de questionar aquilo que estava posto como acabado e com ponto final. Nunca gostei de adaptar-me ao totalitarismo da opção única. Sempre procurei mais de um caminho e várias propostas de intervalos para estruturar minha melodia secundária. Sempre quis assumir o papel de protagonista principal da peça já que no papel de figurante me sentia inútil e sem sentido. E por querer assumir meu papel diante de tudo e de todos, por querer me tornar eu mesmo, ter opinião e autonomia, ser diferente e independente, acabava suscitando reações míticas e discriminatórias do pessoal que é programado para mandar e desmandar em todas as coisas.
Mas nunca me dei por vencido. Fui à luta. Desconstruí mitos e rompi tratados com falsos moralistas e cínicos demagogos. Fiquei só? Sim. Claro que fiquei só. Gente como eu não consegue ter amigos. Principalmente quando se trata de amigos que só são amigos quando estão na parada para levar vantagem. E eu não tenho vantagens para oferecer para quem quer que seja. O que eu tenho para oferecer é a postura de um iconoclasta e destruidor de mitos, de tolos e alienados. Hoje vejo que perdi muitas batalhas, mas no geral acredito que venci a guerra. Depois de tudo, quando olhei com um olhar inteligente para dentro de mim mesmo, pude ver que meus princípios éticos estavam lapidados, minha reputação moral intocável, e minha integridade profissional irrefutável. Tudo feito e conquistado com muito amor. Quando o amor não resolvia, o jeito era mesmo partir pra porrada. A fórmula sempre deu certo.
Olhando bem, dá pra perceber que tem muita coisa mal resolvida em nossa volta! Vai demorar, não sei quanto tempo, pra gente solucionar a montanha de problemas que a cada dia aumenta mais. Mas é preciso botar fé e acreditar que é necessário construir um novo mundo e uma nova sociedade. Uma sociedade em que todos possam estar envolvidos no poder e nas decisões que afetam a vida de cada cidadão e cidadã desta cidade, deste estado e deste país. Somente num novo mundo onde exista a distribuição de poder e de riqueza, num mundo sem assassinatos físicos e morais, sem discriminação e preconceitos, sem malandros e otários, somente assim é que seremos capazes de escolher o nosso próprio destino ao invés dos outros se arvorarem a fazer isso por nós. Enquanto isto não acontece, nada de doar a outra face para continuar apanhando na cara. É pedir demais para qualquer ser humano. Tem gente que não agüenta isso. Eu pelo menos não consigo. Prefiro botar pra fora minhas feras selvagens e partir pra cima. É assim que consegui ficar vivo até hoje numa boa, quer dizer, tranqüilo e feliz. Mas é bom permanecer alerta porque a malandragem, que não dorme nunca, continua agindo nas caladas da noite e nos bastidores do poder. Ou gentinha safada!!!





Adelson Santos é maestro, compositor e professor de música da UFAM.


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